BC dá mais um passo para criar o ‘real digital’. Ele não será um bitcoin
Moeda virtual do BC é plano para daqui dois anos e pode mudar o crédito como conhecemos.
Quem é do time que saca dinheiro no caixa eletrônico uma vez por ano pode ter dificuldades para entender a diferença do dinheiro de hoje para o real digital, como vem planejando o Banco Central. Natural. Se tudo passa pelos dígitos na conta do banco ou pelos cartões, o dinheiro já não é digital? Até é, mas são coisas diferentes.
Na origem, o dinheiro surge quando o Banco Central emite as cédulas e coloca para circular na economia. Quando o dinheiro chega no banco, porque você depositou o dinheiro lá, a responsabilidade passa a ser da instituição financeira. O banco pega uma parte da grana e empresta para quem precisa de crédito. Isso é o que funciona hoje.
Então, quando você deposita R$ 100, o banco guarda R$ 20 por garantia e usa os R$ 80 para emprestar para outro cliente. Nisso, os R$ 100 viraram R$ 180. Se todo mundo quisesse desfazer a brincadeira, sacar o dinheiro e colocar a grana embaixo do colchão, não vai dar. Não tem nota de papel pra todo mundo. Grosso modo, por isso que o dinheiro é virtual há muito tempo (antes da internet e dos apps, ele era criado nos balanços de papel dos bancos). O importante é seu dinheiro existe e a responsabilidade de garantir o resgate é da instituição financeira.
Com o real digital, não existem as notas, sejam elas de R$ 10, R$ 50 ou R$ 200 (caso você já tenha visto um lobo guará por aí). O plano do BC é o seguinte: em vez de imprimir a cédula, ele gera um código que equivale a essa quantidade de dinheiro. O valor é transferido para os bancos, responsáveis por guardar e distribuir o valor com todo mundo. Se você terá e-R$ 100 na conta do banco, como tinha antes os R$ 100, e poderá usar para pagar boletos e fazer compras.
O lance aí é guarda do dinheiro, tecnicamente chamada de custódia. Hoje, o banco não precisa deixar no cofre o valor que você depositou, ele não deixa, como vimos. No e-Real, será o contrário. O dinheiro ficará custodiado nesse cofre virtual do banco e não poderá virar crédito para outras pessoas. Funciona quase como no caso das fintechs: se você deposita o dinheiro num PicPay da vida, ele não pode usar para dar crédito. Fica tudo guardado em título público no Banco Central, para quando você precisar resgatar ou pagar uma conta. Tudo porque o dinheiro é garantido pelo BC e não pode sumir.
Dito assim, está claro que num primeiro momento, a mudança é maior para os bancos: o seu e-Real depositado não vira crédito. Como, então, vai existir dinheiro para você financiar o iPhone novo ou a casa própria? Essa é uma preocupação legítima – e ainda sem resposta. Nesta segunda (24), o coordenador dos trabalhos sobre a moeda digital do Banco Central, Fabio Araujo, afirmou que esse é um dos motivos para que as duas moedas (a analógica e a digital) existam conjuntamente e não há ainda uma conta de qual a quantidade de real de papel poderá ser convertida em real digital sem causar estragos na economia.
O nome oficial desse tipo novo de moeda é gringo: Central Bank Digital Currency (ou dinheiro digital do Banco Central), ou CBDC. Outros países estudam algo parecido. Nas Bahamas a moeda digital foi adotada no ano passado. Na China, o governo fez experimentos em algumas cidades e planeja testar com turistas nos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022. Suécia e Coreia do Sul são outros exemplos mais avançados.
Em todos os lugares, a preocupação é com o sistema financeiro. Ainda assim, na China, o governo não usou o sistema bancário do país para testar sua moeda. Ele criou um aplicativo para o e-Yuan e creditou o dinheiro lá.
Por aqui, o BC pretende usar apenas aplicativos já ligados ao sistema financeiro. Ainda não há um prazo para a estreia do real digital nem em fase testes. O anúncio feito pelo BC foi apenas com as primeiras regras de como a tecnologia deve funcionar. Esses parâmetros ainda serão destrinchados pelo mercado financeiro e pela sociedade, e podem sofrer alterações. O BC espera levar pelo menos mais dois anos estudando o projeto.
O fato é que, para o consumidor, as duas moedas são um espelho uma da outra: um e-real comprará o mesmo que um real aqui no país. As transferências pelo Pix continuam instantâneas e se a pessoa quiser dinheiro em espécie, ainda vai poder ir num caixa eletrônico atrás das cédulas.
Como é uma moeda digital, será preciso desenvolver uma rede própria para a circulação desse dinheiro, a exemplo do que ocorre com o bitcoin (que transaciona pela blockchain). Araujo, do BC, disse que ainda não há uma definição de qual tecnologia será utilizada, é coisa para os próximos anos. Existem conversas com a MasterCard, que desenvolveu a rede das Bahamas, afirmou.
Certo é que o e-Real não tem nada a ver com bitcoin e nenhuma outra criptomoeda. A principal diferença está, óbvio, no que define moeda. Que ela sirva como unidade de conta, reserva de valor e meio de troca. E essas coisas todas funcionam porque o dinheiro é emitido por bancos centrais.
As criptos você sabe: o preço oscila tanto que elas não cumprem com nenhum dos atributos de moedas. Esse sobe e desce joga no ralo a ideia de reserva de valor e unidade de conta. E sem esses atributos, ninguém consegue vender algum produto e receber em criptos.
Agora, a moeda digital dá, sim, superpoderes aos bancos centrais. É que passa a ser possível rastrear todo o caminho feito pelo dinheiro: quanto você pagou e para quem e o que esse alguém fez com o mesmo dinheiro depois.
Nas diretrizes do real digital, o BC diz que as mesmas regras de sigilo bancário e Lei Geral de Proteção de Dados serão seguidas. Quer dizer que poderá haver quebra de sigilo caso haja uma investigação por crimes como lavagem de dinheiro.
O que o BC espera, mesmo, é que o dinheiro passe a circular com menos burocracia e permita a oferta de serviços inovadores, após a integração com a internet das coisas. Um exemplo banal, citado por Araujo, do BC, é o clássico da geladeira que faz “compras sozinha”. A compra de itens poderia ser automatizada com o real digital.
Há a expectativa, ainda, que as operações de câmbio sejam facilitadas. Como se as CBDCs permitissem a criação de um Pix global para remessa de dinheiro. Esse, no entanto, também é um plano bastante distante, porque depende não só de como o Brasil vai caminhar, mas do que acontecerá lá fora.