Educação financeira: grupos especializados focam o ensino para minorias
Desde digital influencer com canal no youtube a cursos presenciais realizados na periferia, a conscientização ganha espaço e se populariza no país
O investidor brasileiro é um homem de 42 anos, casado, pai de dois filhos e com uma renda mensal de 5 000 reais. Essa é a conclusão de um estudo de 2019 realizado pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima). Num país em que mulheres e negros representam metade da população, o perfil daqueles que conseguem poupar e fazer seu dinheiro render não poderia ser mais distante da realidade da sociedade brasileira.
Essa disparidade pode ser justificada por diversas razões, mas, sobretudo, ela tem suas raízes na desigualdade de renda gritante do país. Por aqui, por exemplo, o rendimento médio mensal de 1% dos mais ricos foi quase 34 vezes maior do que o da metade mais pobre, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2018.
Ainda de acordo com o IBGE, no mesmo período cerca de 16 milhões de famílias viviam com renda per capita mensal de aproximadamente 413 reais. E, se você pertencer a uma minoria, sofrerá ainda mais. De 2012 a 2018, as mulheres ganharam, em média, 21% menos do que os homens; as pessoas pardas e pretas receberam rendimentos 26% e 27% mais baixos, respectivamente, em relação aos brancos.
Diante de salários tão desiguais, é óbvio que a capacidade de cada grupo de guardar dinheiro e aplicar suas economias também será diferente. “Essa parcela da população muitas vezes precisa escolher entre poupar e pagar as contas, já que fazer os dois é quase impossível”, diz Dagoberto José Fonseca, professor no Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
A esse cenário soma-se o fato, já conhecido, de que a população brasileira, no geral, tem pouca familiaridade com educação financeira. Segundo dados da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e do SPC Brasil, 53% das pessoas desconhecem a própria renda. Outros tantos (52%) não sabem, por exemplo, quantas parcelas de compras realizadas no crediário ainda falta pagar.
“O Brasil tem uma grande deficiência na educação básica, principalmente em matemática. Essa situação torna os grupos vulneráveis mais suscetíveis a empréstimos predatórios, como é o caso do cheque especial”, explica Eduardo Estellita, consultor de diversidade e professor na Casa do Saber, instituição que promove aulas e palestras sobre vários temas em São Paulo.
O bê-á-bá do dinheiro
Foi pensando em ajudar esse público que Nathália Rodrigues de Oliveira, de 21 anos, criou, em 2018, o canal Finanças com a Nath, focado em ensinar educação financeira a pessoas de baixa renda. A ideia surgiu quando a estudante, que atualmente cursa o último ano da faculdade de administração, começou a ter aulas de matemática financeira e a entender como funcionam os processos de financiamento e a amortização de dívidas, por exemplo. “Eu queria que outras pessoas também aprendessem o significado desses termos. Hoje, elas fazem empréstimos e não sabem como os juros são cobrados”, afirma.
Antes de colocar a ideia em prática, Nathália pesquisou outros canais na web e descobriu que havia poucas iniciativas semelhantes à sua. “Os conteúdos eram, até então, para classes mais altas, que têm um poder aquisitivo mais elevado. Ensinavam coisas como poupar 1 000 reais por mês ou os melhores investimentos para o próximo ano. Isso sem considerar que os brasileiros não sabem questões simples, como a diferença entre crédito e débito”, diz a digital influencer.
Moradora de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Nathália chega a passar 5 horas no transporte público para fazer estágio em uma consultoria financeira, e entende bem a realidade de seus seguidores. “Quando tive meu primeiro cheque especial, também não sabia como ele funcionava. Chegava o final do mês, eu ficava sem dinheiro e acabava usando o limite, acreditando que aquilo fosse meu”, afirma.
Desde janeiro de 2019, quando estreou no YouTube, a estudante gravou dezenas de vídeos explicando o que são ações, dando dicas de como sair do vermelho ganhando pouco e como controlar o cartão de crédito. Hoje, são 65 000 inscritos no YouTube e 62 000 seguidores no Instagram, além de algumas parcerias com companhias como Twitter e Sebrae. Com tanto sucesso, Nathália já tem planos mais ousados. “Quero adquirir bagagem para transformar o projeto numa empresa”, diz.
Embora de forma tímida, assim como Nathália, outros grupos e movimentos que levam educação financeira para minorias começam a se popularizar. Tais iniciativas visam ajudar as pessoas a entender os mecanismos relacionados ao dinheiro para que possam, com isso, tomar decisões mais conscientes — o que, num cenário de 61 milhões de brasileiros inadimplentes, é algo cada vez mais urgente.
“Diante da escolha entre pagar o gás e o cartão de crédito, quem não teve educação financeira vai preferir o primeiro, sem saber que as taxas de juro do cartão serão mais altas. Por isso o papel desses grupos é bastante relevante”, afirma Eduardo, da Casa do Saber.
Da quebrada para a bolsa de valores
Quem também embarcou nesse nicho foi Gabriela Chaves, de 25 anos. Negra e moradora de Taboão da Serra, em São Paulo, em 2018 a jovem largou o emprego na bolsa de valores, como analista de produtos, e fundou a NoFront, iniciativa que oferece cursos de educação financeira para pessoas negras e de baixa renda. “A falta de conhecimento, inclusive, é algo benéfico para as instituições financeiras, uma vez que parte da população lucra muito com isso”, diz Gabriela.
Gabriela percebeu que, além de o conteúdo ser muitas vezes voltado para as classes A e B, a forma como era apresentado, com diversos termos técnicos, também afastava as pessoas do mundo das finanças. Por isso, resolveu desenvolver uma metodologia de ensino que usasse como base a discografia do grupo de rap paulista Racionais MC’s. “Foi a dissonância entre esses dois mundos que fez com que eu quisesse uma forma de dialogar mais de perto com a realidade da população negra”, explica Gabriela. No primeiro ano do curso, a NoFront recebeu 500 inscritos e, em 2019, esse número pulou para 1 500 alunos.
Em junho do ano passado, após a entrada do sócio Rodrigo Dias, cientista da computação e planejador financeiro, a consultoria também passou a oferecer as aulas por meio de uma plataforma online, com valor de 197 reais — o custo é o mesmo para quem opta pelo curso presencial. Porém, para não perder o viés acessível, há a possibilidade de participar da iniciativa por meio de bolsas. “Para cada aluno pagante, oferecemos o curso gratuito para desempregados, mães solos e LGBTQI+. Todas as turmas têm pelo menos 30% de bolsistas”, afirma Gabriela.
Parte do lucro da NoFront é usada para bancar os gastos pessoais de Gabriela e o restante é reinvestido na plataforma. “Meu propósito, entretanto, não é só lucrar financeiramente mas também retribuir o ganho para a sociedade. Por isso, fazemos formações gratuitas em comunidades quilombolas, por exemplo”, diz a economista.
A pedagoga Marisa Candida Paulino, de 51 anos, e o filho Pedro Luiz da Cruz, estudante, de 17 anos, foram alunos do primeiro curso da NoFront em 2018. Moradora do bairro Vila Nova Cachoeirinha, extremo da zona norte de São Paulo, Marisa admite que, antes de participar da iniciativa, sabia pouco sobre o mundo dos investimentos. “Eu já tinha alguns cuidados com meu dinheiro, mas deixava o que sobrava na conta-corrente. Não via além disso, não me enxergava como investidora”, afirma.
O pontapé inicial para fazer aplicações foi no começo de 2019, depois de ter o carro roubado. “Percebi que, com a indenização que recebi, não conseguiria comprar um carro zero e calculei que seria mais barato andar de táxi”, diz Marisa. Como o automóvel havia sido adquirido em um consórcio, a pedagoga destinou cerca de um terço do dinheiro para quitar as parcelas que faltavam e o restante aplicou em fundos de renda fixa. “Hoje o investimento já rendeu o equivalente ao valor total pago pela seguradora”, diz.
Por causa das orientações recebidas na NoFront, Marisa criou o hábito de pagar as contas à vista e de calcular melhor seus gastos, lições que possibilitaram a realização de alguns projetos pessoais. “Foi com o curso que aprendi a estabelecer metas de curto e longo prazo”, afirma.
Em 2019, por exemplo, ela economizou cerca de 10% por mês de seu salário como aposentada e professora de educação infantil. Com isso, pôde arcar com duas viagens à Bahia e pagou parte das despesas de um curso de intercâmbio para o filho. Pedro vai viajar para Cape Town, na África do Sul, em março deste ano, onde passará 50 dias. “Embora ele tenha ganhado uma bolsa, estou custeando a estadia, a passagem e os custos de passaporte”, diz. A pedagoga, inclusive, vai ficar 15 dias com o filho na cidade africana.
Realizar projetos como os que Marisa e Pedro conseguiram é uma conquista significativa, principalmente para as classes mais baixas. “Quando se tem menos dinheiro, as escolhas são mais complexas”, diz Eduardo, da Casa do Saber. Ele relembra que, geralmente, os mais pobres moram longe dos centros urbanos e, portanto, desembolsam mais com transporte para o trabalho e lazer, por exemplo.
“Ir ao cinema no fim de semana pode sair mais caro do que apenas o preço da entrada porque você precisa incluir o tempo de trajeto e o custo de transporte nessa conta”, afirma. Nesse contexto, planejar-se para realizar viagens internacionais é uma realidade quase impossível.
Investimento não tem gênero
No caso das mulheres, além dos salários desiguais, as dificuldades em pensar nas finanças têm origens ainda em décadas passadas. Até os anos 60, por exemplo, as cidadãs brasileiras não tinham direito nem a um CPF, o que impedia que abrissem contas em banco e as afastava do mundo dos investimentos. Isso explica o fato de que, embora grande parte dos lares seja chefiada por mulheres, elas representem apenas 30% das investidoras no país.
Pensando nisso, em outubro de 2018, duas funcionárias da corretora Easynvest deram início ao movimento Nós, Mulheres Investidoras. A ideia do projeto surgiu ainda em 2017, quando Giselle Mendes, da área de projetos e eventos, e Naya Lobo, de marketing, sugeriram a contratação de influenciadoras, como a jornalista Natália Arcuri, para produzir conteúdo sobre investimentos. “A partir daí, notamos uma aderência muito grande do público feminino e percebemos que esse era um nicho em que tínhamos atuado pouco. Por isso decidimos apostar em um movimento exclusivo para elas”, explica Giselle.
Além de um blog, um podcast e um e-book sobre educação financeira para mulheres, o grupo organizou, no ano passado, um workshop só para o público feminino. O piloto teve duração de quatro dias e contou com 12 participantes, com idades entre 25 e 60 anos. “Começamos falando sobre as crenças limitadoras, mas também abordamos planejamento e até mesmo o passo a passo para a abertura de uma conta em uma corretora”, afirma Giselle.
Para 2020, o objetivo é ampliar o workshop para o público em geral e trazer embaixadoras para o movimento que tratem de temas como entretenimento e lifestyle. Mesmo recente, o trabalho do Nós, Mulheres Investidoras começa a aparecer. No Facebook a comunidade já tem 2 500 participantes e o número de mulheres ativas na base de clientes da Easynvest cresceu de 26%, em 2017, para 39%, em 2020. “Nosso foco não é só tornar a mulher investidora, mas contribuir para que ela entenda que pode tomar sozinha as rédeas da vida financeira e da vida pessoal”, conclui Giselle. Que no futuro iniciativas como essas se multipliquem e diversifiquem o perfil dos investidores brasileiros.