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Mão de obra sofreu "uberização"

A popularização dos serviços prestados por meio de aplicativos incendeia a discussão sobre o limite das obrigações entre empresas e trabalhadores

Por Luciana Lima
Atualizado em 5 dez 2020, 19h37 - Publicado em 11 ago 2017, 06h00

O Tribunal Regional do Trabalho de Belo Horizonte, em Minas Gerais, recentemente foi palco de um debate que vem sendo travado na esfera pública e legal em muitos países: existe relação laboral nas empresas de compartilhamento de serviços? Para o juiz Filipe de Souza Sickert, da 37ª Vara do Trabalho de BH, a resposta é não.

Na sentença de 30 de janeiro, a primeira desse tipo no Brasil, o magistrado recusou o pedido de um motorista para que a Uber pagasse suas férias, seu 13º e outras despesas. Menos de 15 dias depois, em 13 de fevereiro, no mesmo tribunal, só que dessa vez na 33ª Vara Judicial, o juiz Márcio Toledo Gonçalves concluiu o oposto.

Não só reconheceu vínculo empregatício entre um motorista e a mesma Uber como também obrigou a companhia a pagar todos os direitos trabalhistas. Em sua sentença, ele julgou que, após o fordismo e o toyotismo, estamos entrando na “era do uberismo” — quando seria fácil para as organizações contratar mão de obra por meio de aplicativos para se livrar das obrigações trabalhistas.

As duas decisões representam a polarização que ocorre sempre que uma nova tecnologia remexe o mercado. Frutos da crise de 2008, que obrigou trabalhadores a buscar renda extra, as empresas de economia compartilhada trouxeram de forma repaginada o antigo hábito das pessoas de trocar produtos e serviços entre si.

Surgiram companhias de transportes sem um único carro ou de hospedagem sem nenhum quarto, e cada vez mais profissionais aceitaram permutar esforço e conhecimento com desconhecidos por meio de plataformas digitais. “A tecnologia propiciou que processos existentes fossem repensados, atendendo alguns apelos para a melhor utilização dos recursos produtivos e a otimização de serviços”, diz a professora Neusa Borges, do Centro de Inovação e Criatividade da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

Porém, não dá para confundir negócios de economia compartilhada com os de economia colaborativa. Diferentemente do que fazem as de economia colaborativa, as empresas de economia compartilhada conectam alguém que precisa de um produto ou serviço com outro alguém que oferece tal produto ou serviço; entretanto, não repartem seus lucros com os membros da rede.

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A mais famosa dessas companhias, a Uber, foi considerada pelo Wall Street Journal a segunda startup mais valiosa, com um valor de mercado estimado em 41,2 bilhões de dólares. Na outra ponta, seus motoristas amargam dívidas de até 97 000 dólares, como relatou um deles num vídeo que viralizou na internet. A Uber não quis participar desta reportagem.

A evolução desse tipo de empreendimento mexe tanto com os costumes sociais quanto com a regulamentação do setor. Não faz muito tempo, taxistas saíram na mão, literalmente, com motoristas particulares reivindicando uma legislação que impedisse os aplicativos de caronas de monopolizar o setor de transporte. “Do mesmo jeito que se percebeu que essas companhias poderiam apresentar concorrência desleal de mercado e, por isso, surgiu a necessidade de uma lei, a discussão agora se volta para o vínculo entre as pessoas que trabalham por meio desses aplicativos e as firmas que os oferecem”, diz a professora da ESPM.

Quando diversos estudos sobre o futuro do trabalho apontam que a mão de obra será contratada ocasionalmente, por projetos ou necessidade, o crescente número de negócios baseados em aplicativos incendeia a discussão sobre os limites e as obrigações de cada parte — trabalhadores e empregadores.

De quem é a responsabilidade por um serviço malfeito se o executor não responde diretamente à empresa? Se um motorista chamado por um app bate o carro, quem deve pagar as despesas médicas do passageiro? Numa época em que tanto se fala da necessidade de engajar pes­soas, como exigir tal comprometimento de alguém que recebe tão pouco de contrapartida? Qual é o papel do profissional de recursos humanos ao gerir essa massa de profissionais desvinculada?

O debate passa pelas diferentes visões sobre a função do estado e das corporações na economia e na sociedade. Entre críticos e defensores da uberização da mão de obra só há um consenso: essas organizações não se enquadram em nenhuma lei que temos hoje.

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Bem-me-quer, malmequer

A internet mudou as relações mais rápido do que a legislação conseguiu acompanhar. Como aconteceu nos processos de Belo Horizonte, cabe a cada juiz analisar a existência ou não de uma relação trabalhista entre os prestadores de serviços e os donos dos aplicativos pelos quais vendem a mão de obra.

Para caracterizar esse famigerado vínculo, é crucial comprovar a subordinação. Ela pressupõe que o empregador dite como, quando e onde o empregado deve trabalhar. “Nessas empresas, o profissional tem a liberdade de se cadastrar ou não, além de poder optar quando está disponível — o que vai contra o conceito atual para configurar a subordinação, pelo qual o patrão determina a quantidade de horas ou dias que alguém lhe presta serviço”, afirma o advogado trabalhista Aldo Martinez, do Souza Cescon, escritório que atende grandes corporações e que, na área de relações governamentais, tem a Uber entre seus clientes.

Quem discorda alega que as companhias de economia compartilhada realizam um controle mais sofisticado dos “parceiros” (o equivalente a funcionários nas organizações tradicionais). “Startups de compartilhamento de carro, por exemplo, fiscalizam e orientam o motorista por meio do envio de e-mails que sugerem uma quantidade média de viagens ou atendimentos. Seria parecido com a relação que se estabelece entre empregadoras e vendedores externos ou propagandistas”, afirma o advogado trabalhista Ricardo Meneses, do escritório Küster Machado. Para ele, o vínculo se configura mesmo que esses profissionais não se apresentem em um determinado local ou não tenham a jornada controlada.

Com medo de estabelecer essa ligação, o criador da Vaniday mudou seu modelo de negócios. A startup, lançada em 2014 para conectar clientes a prestadores de serviços de beleza, inicialmente cadastrava (no jargão desse mercado, significa contratar) apenas profissionais liberais em sua plataforma.

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Mas, ao receber um dinheiro da incubadora alemã Rocket Internet, veio um alerta. “A Rocket tinha uma empresa de empregadas domésticas que estava sofrendo bastante com processos trabalhistas, por isso os investidores nos aconselharam a contratar salões de beleza para evitar esse tipo de problema”, diz o fundador da Vaniday, Cristiano Soares.

Outro problema: a parceria com os autônomos prejudicava o bom andamento do negócio. “Muitos profissionais deixavam de ir aos agendamentos nos sábados, por exemplo, porque haviam saído na sexta-feira à noite”, afirma Soares. A solução, como numa corporação tradicional, foi reduzir o quadro para melhorar o controle.

A Vaniday, que chegou a ter 3 000 salões cadastrados, hoje funciona com 2 000 estabelecimentos (e nenhuma mão de obra avulsa). Em 2016, a plataforma cresceu mais de 200% em volume de negócios e atende hoje 37 000 pessoas.

Como em qualquer empreendimento, a qualidade do serviço entregue depende dos profissionais. Mas, na economia compartilhada, isso dobra de importância, uma vez que essas instituições sobrevivem à base das avaliações dos usuários e da reputação no mercado. “A empresa pode até oferecer treinamentos, mas a própria tecnologia cria mecanismos para incentivar esses trabalhadores a prestar um bom trabalho”, diz o consultor de gestão José Augusto Minarelli, da consultoria que leva seu nome.

Se o indivíduo tem avaliações baixas, ele deixará de ser contratado, acabará saindo da plataforma e, por fim, perderá esse dinheiro extra. Nessa relação, cujo papel do líder de recursos humanos foi substituído pelo do chefe de relacionamento, o retorno financeiro é o maior fator de engajamento.

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Se o comportamento (e o comprometimento) do profissional afeta diretamente a qualidade do serviço, imagine a dimensão disso quando o que está em jogo é cuidar dos filhos dos outros.

Foi pensando nisso que a ex-diretora de recursos humanos Luciana Pereira desenvolveu um processo de seleção tão ou mais rigoroso do que o de grandes corporações para sua startup Click Babá — aplicativo para contratar cuidadoras de crianças. “Como eu e meu marido criamos a empresa por não encontrar profissionais qualificados para ficar com nossos filhos por pouco tempo, focamos um recrutamento bem completo”, afirma Luciana.

São três etapas: a primeira é uma análise cadastral da formação acadêmica das candidatas (são permitidas apenas educadoras ou enfermeiras), da experiência e das referências; a segunda é um teste de aptidão online; e, por último, uma entrevista por vídeo. Se aprovadas, as babás ainda enfrentam um treinamento situacional e outro comportamental, ambos com a própria Luciana. Em média, o processo dura 30 dias.

Outra exigência da Click Babá é que as profissionais tenham um trabalho em tempo integral e que os serviços gerados pelo aplicativo entrem como complemento da renda. Além de fugir das implicações trabalhistas, a medida reforça um discurso politicamente correto e atual. “Queremos que a profissional se mantenha ativa em sua vocação e que continue se qualificando. Quando alguma delas fica desempregada, tem seis meses para se recolocar — senão é descadastrada”, diz a fundadora. Atendendo na cidade de São Paulo, a Click Babá mantém 85 babás ativas.

A visão de dar oportunidade à mão de obra é compartilhada pela Posher, outra startup que intermedeia serviços estéticos. Diferentemente da concorrente Vaniday, que arrasta as clientes aos salões de beleza cadastrados, a Posher leva manicures e cabeleireiras para atender funcionárias de grandes companhias, no horário de expediente. “Durante a semana, o movimento dos salões é baixo, já que a maioria das pessoas está trabalhando. Desse jeito, as manicures ficam ociosas. Com o aplicativo, elas têm oportunidade de otimizar o tempo e aumentar a renda”, afirma Julio Hirose, cofundador da Posher, que foi lançada no começo de 2016 e já conta com cerca de 250 profissionais.

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Embora muitas dessas empresas tenham se popularizado com promessas quase utópicas (desde diminuir o trânsito das cidades até promover uma sociedade mais sustentável em detrimento da acumulação desenfreada de bens), o fato de não oferecerem contrapartida aos profissionais fez com que virassem alvo de críticas.

Nos Estados Unidos, difundiu-se a ideia de elas serem “bicos oficiais” e, desse modo, ao mesmo tempo que oferecem uma alternativa de renda extra também precarizam as relações de trabalho. “Essas companhias se eximem de qualquer responsabilidade. Os funcionários têm de arcar com todas as despesas da atividade que exercem e não contam com nenhum apoio”, afirma Ricardo Meneses, do Küster Machado.

Ele cita o exemplo da Uber, na qual o motorista gasta com gasolina, alimentação e balinhas para os passageiros, além do custo da depreciação do carro. “No auge do desemprego, pode ser uma oportunidade. Mas, até perceber que está perdendo dinheiro, a pessoa já investiu um tempo”, diz o advogado.

Para não seguir o mesmo caminho da Uber — que vem recebendo críticas de motoristas e de perda de qualidade dos serviços —, algumas startups passaram a oferecer mais vantagens a seus parceiros.

É o caso da CargoX, plataforma que intermedeia serviços de transporte de cargas. Criado em 2016, o aplicativo conta com 250 000 caminhoneiros cadastrados e atende companhias como Ambev, Whirlpool e Nestlé. “A gente já oferece desconto em combustível e facilidade de financiamento de veículos. Agora estudamos a possibilidade de dar um plano de saúde aos motoristas”, diz Reinaldo Menegazz, líder de relacionamento da empresa e responsável pela gestão dessa mão de obra. A ideia é oferecer uma gama de benefícios que os caminhoneiros não conseguiriam sozinhos.

A Easy Taxi também se preocupa em assegurar que o negócio continue vantajoso para os 140 000 taxistas cadastrados e procura ouvi-los antes de mudanças estratégicas, como alterações de preço. Foi assim quando lançou, em junho de 2016, uma modalidade de corrida 30% mais barata, a Economy. “A equação de tarifas entre táxis e carros particulares estava desequilibrada, e isso fez com que perdêssemos mercado. Por essa razão, negociamos com os taxistas cadastrados na nossa plataforma para lançar uma modalidade popular e, assim, competir com os aplicativos de caronas”, afirma Fernando Matias, presidente da Easy Taxi. Agora os motoristas podem optar por aceitar ou não as corridas com desconto.

Essa atenção com a outra ponta é importante, sobretudo porque o debate sobre a responsabilidade social corporativa tem ganhado força. “As pessoas estão ficando mais conscientes e passam a ver essas empresas como oportunistas. Nesse contexto, muitos usuários desses serviços questionam a si mesmos: ‘Eu sei que esse modelo é predatório, quero fazer parte disso?’”, afirma Neusa, da ESPM.

Para o professor Wilson Amorim, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, é preciso lembrar que essas startups são capitalistas — sem nenhum romantismo. “Ainda existe alguém que seja dono do empreendimento, tenha mais capital e, por isso, leve vantagem em relação aos outros indivíduos da cadeia.

Embora o empresário chame esses trabalhadores de parceiros, geralmente, eles não opinam no negócio, mas subordinam-se às suas ordens”, diz Amorim. “Com a taxa altíssima de desemprego como a que estamos vivendo, a capacidade de escolha real do profissional diminui, pois ele precisa pagar as contas.”

Enquanto não houver uma legislação que defina as regras do jogo, duas coisas são certas. Uma é que empresas, trabalhadores e clientes continuarão desprotegidos. O desafio nessa ponta será encontrar uma regulamentação que não limite nem emperre a inovação.

Até agora, a alternativa mais plausível parece ser a de criar uma terceira categoria de empregados (a dos trabalhadores por aplicativos), que poderiam ou não ter direitos mínimos garantidos. O que nos leva à segunda certeza: a vida dos profissionais de recursos humanos tende a ficar mais complexa.

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