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Multinacionais tabagistas miram novo modelo de negócio no Brasil

Multinacionais tabagistas reinventam modelo de negócio e aumentam pressão para que autoridades brasileiras liberem os cigarros eletrônicos no país

Por Claudia Branco e Mariana Poli, da VOCÊ S/A
Atualizado em 19 dez 2019, 14h50 - Publicado em 28 ago 2019, 05h00

Nos anos 60, quase metade (42%) da população adulta americana fumava. O cigarro era sexy, moderno, um ato de rebeldia contra a rigidez dos costumes. De James Dean a Bette Davis. De Audrey Hepburn a Marilyn Monroe. Do lendário agente secreto James Bond, de 007, à diva Rita Hayworth.

A fumaça pairava sobre Hollywood — e sobre o resto do mundo que assistia a seus filmes. Seria impossível imaginar, sob a ótica daquela época, o revés que o mercado tabagista sofreria.

No ano passado, segundo dados oficiais do governo dos Estados Unidos, o número de fumantes havia caído para 14%, cenário que se assemelha ao de diversos outros países.

No Brasil, uma pesquisa do Ministério da Saúde mostrou que as pessoas com hábito de fumar passaram de 15,7% da população, em 2006, para 9,3%, em 2018 — redução de 40% em 12 anos

Mas a centenária indústria do tabaco não está derrotada. Ao contrário. Na última década, iniciou uma revolução silenciosa que agora começa a fazer barulho. No ano passado, um dos gigantes do setor assumiu, inclusive, que pretende matar o fumo enrolado no papel.

O que nasce no lugar? Uma geração de produtos muito mais auspiciosos: os dispositivos eletrônicos para fumar (os DEFs, que também respondem pelos nomes e-cigarette, e-ciggy, e-cigar e vape). De modo geral, eles são movidos a bateria, têm piteira na ponta e um pequeno reservatório interno no qual se introduzem tabaco, ervas ou capsúlas líquidas, que podem ser com ou sem nicotina.

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Em vez de queimar as substâncias, esses cigarros high-techs as aquecem. Isso, em teoria, diminui a exposição a agentes tóxicos e faz desses apetrechos uma alternativa menos maléfica para quem não consegue — ou não quer — parar de fumar. Esse, aliás, é o pulo do gato.

No fundo, a mesma indústria que criou o problema (que mata 7 milhões de pessoas por ano no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde) agora quer emplacar uma solução. E seguir lucrando no século 21.

Em um vídeo intitulado A jogada por trás dos cigarros eletrônicos, o médico Drauzio Varella afirma que existe uma intenção oculta nesse mercado em ascensão.

“A taxa de fumantes vem caindo ano a ano. Por quê? Porque o adolescente fala: ‘Não vou fumar, cigarro faz mal, dá câncer, causa um monte de problemas. Mas o eletrônico não, é só nicotina. Ele começa a fumar e, quando vê, está dependente.” De acordo com o oncologista, além de ter um design moderno, boa parte desses aparelhinhos permite inserir também essências, como de menta, chocolate e framboe­sa. “Para quê?”, questiona o médico.

“Para tirar o gosto aversivo da fumaça e viciar as crianças. Não entre nessa. Ao fumar cigarro eletrônico, você está fumando a nicotina. E ela vai escravizá-lo. O que vicia não é o alcatrão nem as outras substâncias. O que faz alguém precisar de 20 cigarros por dia é a nicotina. E o cigarro eletrônico é só nicotina.”

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Relatórios da Euromonitor, consultoria especializada em pesquisas de mercado, dizem que a mudança na lógica tabagista tem potencial para impactar mais de 1 bilhão de fumantes no mundo.

A projeção é que o segmento eletrônico movimente 34 bilhões de dólares até 2021, um aumento de 176% em cinco anos. Em países como Japão e Inglaterra, onde a venda é legalizada, as fabricantes já investem pesado na nova modalidade.

Por lá, suas lojas são tão tecnológicas que ninguém diz que ali se vende cigarro — e não computadores. Mesmo assim, elas negam glamourizar o ato de fumar. A Philips Morris, dona da marca Marlboro, usa o exemplo do Japão, onde os e-cigs são vendidos há quatro anos, para contestar a ideia de que os dispositivos atraem os jovens.

Segundo a própria multinacional, 98% dos japoneses usuários de cigarros eletrônicos já eram fumantes antes, o que derrubaria o argumento de que são uma porta de entrada.

Seja como for, se esse mercado estivesse fadado ao fim, gente poderosa não estaria investindo nele. Em 2013, Sean Parker, cofundador da Napster, importante conglomerado de mídia e tecnologia, e Peter Thiel, fundador do PayPal, investiram na Njoy, startup de cigarro eletrônico, 10 milhões e 65 milhões de dólares, respectivamente.

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No final do ano passado, outro movimento sintomático. A Altria, maior tabagista dos Estados Unidos, comprou 35% da Juul Labs, criadora do Juul, o mais famoso e-cigar do mundo, na qual investirá 12,8 bilhões de dólares.

Analucia Saraiva, gerente de relações científicas da Souza Cruz: sua missão é defender a regulamentação no Brasil | Leandro Fonseca

No Brasil, no entanto, a virada do negócio esbarra na legislação. A partir de 2009, medidas firmes foram adotadas no país contra o tabagismo. Além da Lei Antifumo, que censura propagandas de cigarro e o proíbe em ambientes fechados, uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) desautorizou a produção, a distribuição e a comercialização de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar.

Mas isso não significa que o setor esteja de braços cruzados. As companhias de tabaco vêm aumentando a pressão para que as autoridades revejam a proibição. Em abril de 2018, na gestão de Michel Temer (MDB), houve um painel no auditório da Anvisa, em Brasília, para discutir possíveis alterações na regulação.

Embora a maioria dos participantes tenha constatado que não há evidências científicas que autorizem a comercialização do fumo digital, o lobby persiste. Até o fechamento desta edição havia uma nova audiência pública marcada para agosto com o intuito de rediscutir a questão.

Queimando o velho negócio

Polêmicas à parte, as empresas avançam. A British American Tobacco, proprietária da Souza Cruz no Brasil e fabricante de marcas como Dunhill e Lucky Strike, investiu 2,5 bilhões de dólares na categoria nos últimos sete anos.

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De lá para cá, seus 1 500 cientistas já publicaram 109 estudos sobre a modalidade e registraram 3 300 novas patentes, como a do iSwitch, vaporizador lançado em 2018 que carrega uma lâmina de aço inoxidável tão fina quanto um fio de cabelo.

“Essa tecnologia libera o vapor de nicotina de forma mais eficiente, gerando 99% menos substâncias químicas indesejadas se comparada aos cigarros convencionais”, diz Analucia Saraiva, de 52 anos. Farmacêutica e mestre em química orgânica pela Universidade Federal Fluminense, ela é hoje uma das principais executivas da organização no Brasil.

“Sou cientista de carteirinha e testemunha da transformação digital dessa indústria. Comecei de jaleco, na área de P&D, e hoje percebo a ciência em todos os departamentos.” Analucia cita drones mapeando plantações de tabaco, detectores de infravermelho monitorando insumo nas fábricas e sistemas de logística modernos para acompanhar entregas em tempo real.

Há 25 anos na Souza Cruz, ela já passou pelos cargos de pesquisadora científica, gerente de assuntos corporativos e gerente de ciência e regulamentação para África e Oriente Médio, trabalhando em Londres. Hoje, ocupa uma posição tática: gerente de relações científicas.

A função de Analucia é fazer interlocução com autoridades médicas e governamentais. E não se sente desconfortável com isso. “Quero que a informação chegue ao consumidor brasileiro.

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O mercado ilegal de cigarros eletrônicos é uma realidade por aqui e precisamos de uma regulamentação adequada.”

De modo geral, a defesa da indústria é que esses produtos são menos mortais. Quando o fumante pega o isqueiro e acende um cigarro, ele queima o tabaco.

Essa combustão libera uma fumaça com mais de 4 000 substâncias químicas, cerca de 50 delas cancerígenas. No novo sistema, é possível, por exemplo, colocar um bastão de tabaco dentro do vape, que esquenta o produto sem gerar combustão, fumaça ou cinza. O sabor e o tempo de consumo são os mesmos: 6 minutos para 14 tragadas.

“O conceito é parecido com o da Nespresso. Uma cápsula de tabaco que vai dentro de um aquecedor. Sem sabores ou atrativos, como aromas, que são a principal critica de organizações antitabagismo”, diz Fernando Vieira, diretor de assuntos externos da Philip Morris no Brasil.

Entre outras coisas, Fernando precisa convencer as autoridades brasileiras a liberar as cigarrilhas eletrônicas. Sua missão está alinhada à estratégia da companhia, que adotou o slogan Smoke-free future (“Futuro sem fumaça”, na tradução do inglês).

Loja da British American Tobacco, em Londres: design moderno para vender cigarro eletrônico | Getty Images

O executivo fala com desenvoltura sobre o assunto. E diz que a orientação da matriz é debater o tema com transparência.

“Nós não escondemos nada. Nosso produto eletrônico tem a mesma quantidade de nicotina do tradicional. Nem mais nem menos. Não é inócuo, mas é uma alternativa melhor. Tenho um pai com duas safenas. Gostaria que ele parasse de fumar ou tivesse acesso a produtos menos nocivos. Isso mudou minha dinâmica. Antes era trabalho, agora virou uma motivação.”

Há três anos, Fernando dialoga com membros da Anvisa sobre a necessidade de uma regulamentação. Ele reforça que a Philip Morris não é contra o combate ao tabagismo.

O objetivo é oferecer uma solução de menor impacto aos 20 milhões de pessoas que ainda fumam no Brasil. A estimativa da empresa é que cerca de 6,6 milhões de adultos fumantes no mundo já tenham parado de usar a modalidade analógica e migrado para os produtos aquecidos, como o IQOS, carro-chefe da Philip Morris, à venda em 44 mercados.

Controvérsia

O Public Health England (PHE), departamento de saúde do Reino Unido, divulgou em 2018 estudo no qual aponta que cigarros eletrônicos podem exercer um impacto positivo na saúde pública do país, uma vez que reduzem até 95% da fumaça tóxica, principal causa de mortes e doenças relacionadas ao tabaco. E recebeu uma enxurrada de críticas.

O órgão está sendo acusado de fechar os olhos e ignorar evidências científicas. Parte das autoridades médicas, que divergem sobre a tecnologia ser menos nociva, afirma que uma série de pesquisas apontam para o lado oposto, revelando que a categoria eletrônica traz, sim, perigo às funções pulmonar e cardiovascular.

“Há relatos até de maior incidência de convulsões entre adolescentes usuários de cigarros eletrônicos”, diz Stella Regina Martins, membro da ­Comissão de Combate ao Tabagismo da Associação Médica Brasileira e organizadora do e-book Cigarros Eletrônicos: O Que Sabemos? (disponível para download no site da Anvisa).

Segundo ela, o discurso sobre a redução de danos é falacioso. “As substâncias que compõem esses cigarros estão classificadas no Grupo A da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, em que não há nível seguro de exposição.

Ou seja, mesmo que existisse uma diminuição de 99,9% nas concentrações, ainda assim o risco de câncer permaneceria”, afirma.

Igor Bento, publicitário: ao testar um modelo de vape por 40 dias, em vez de fumar menos, acabou fumando mais | Edi Vasconcelos

Outro ponto aventado por médicos é que as vantagens para os adultos seriam ofuscadas pelo modismo entre os adolescentes. O caso da cigarrilha Juul é emblemático. Lançada há três anos nos Estados Unidos, ela virou febre entre estudantes — e uma dor de cabeça para a Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora do governo.

Conhecido como o “iPhone dos cigarros”, o aparelho tinha o propósito de ser uma opção menos danosa, mas virou um problema de saúde pública. Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças, o uso desses dispositivos aumentou 78% em um ano entre alunos do ensino médio e 48% entre universitários. O número de jovens usuários saltou de 2,1 para 3,6 milhões de 2017 a 2018.

Na avaliação de entidades antitabagistas, o caso americano é a prova de que não se deve mexer na atual legislação brasileira.

“Proibir é uma forma de regular e de proteger crianças e adolescentes”, diz o pneumologista Alberto Araújo, presidente da Comissão de Combate ao Tabagismo da Associação Médica Brasileira e coordenador do Núcleo de Estudos e Tratamento do Tabagismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O médico faz, ainda, um alerta em relação ao cigarro 2.0: o de que ele não só não ajuda os fumantes a romper o ciclo do vício como ainda leva muitos deles a fumar os dois produtos juntos. No mês passado, a Organização Mundial da Saúde reforçou suas advertências.

O órgão divulgou um relatório no qual desaconselha o uso dos eletrônicos para quem deseja parar de fumar. A instituição informa que, embora não existam estudos conclusivos sobre esses novos sistemas de administração de nicotina, eles são prejudiciais à saúde.

No texto, o órgão afirma que, na maioria dos países onde estão disponíveis, os usuários acabam combinando a opção eletrônica com a convencional.

Foi o que aconteceu com Igor Bento, de 38 anos. Fumante há 20 anos, ele investiu 600 reais em um e-cigar importado. O intuito era abandonar o vício. “Eu queria substituir o cigarro tradicional e, aos poucos, ir diminuindo a frequência do eletrônico usando e-liquids com 5% de nicotina”, afirma o empresário de Teresina, no Piauí.

Os e-liquids, também conhecidos como juices, são os fluidos que vão dentro de alguns desses dispositivos. Foram 40 dias de tentativa. “Tossia muito e engasgava. Procurei formas de regulagem em tutoriais online, mas não me adaptei. Como um não tirava a vontade do outro, eu acabava usando os dois”, diz.

Agora, Igor fuma apenas o cigarro de papel, mas acaba de adquirir, numa viagem de férias à Europa, o polêmico Juul. “Vou testar para ver se é diferente.”

Hoje, as normas em vigor condenam a comercialização desses aparelhos para fumar, mas não legislam sobre o uso ou a posse deles, o que em tese não faz do fumante um infrator. Apesar de a venda ser proibida, diversos sites oferecem vapes e vaporizadores (aparelhos onde se podem aquecer ervas e essências).

A própria reportagem comprou um desses modelos num conhecido e-­commerce brasileiro. A encomenda chegou em dois dias, sem burocracia. “Há um mercado ilegal em expansão por aqui e a proibição não resolve o problema”, diz o publicitário Alexandro Lucian, de 38 anos, conhecido nas redes sociais como Hazard.

Em 2015, ele abandonou o vício que manteve por mais de 15 anos com o auxílio de um vape. “Fumava três maços por dia. Se eu parei, acredito que essa tecnologia possa ajudar outras pessoas.”

Hoje, Alexandro é membro ativo de grupos e comunidades online de usários de modelos eletrônicos e tem até um canal no YouTube sobre o assunto.

“Não faz sentido permitir a venda em qualquer esquina do cigarro, que é extremamente prejudicial, e não dar o direito à alternativa.” Na visão dele, mais importante do que proibir, seria manter o controle rígido da propaganda, a fiscalização dos pontos de venda e o combate ao uso por menores, como já acontece com a outra categoria.   

Enquanto governantes, estudiosos e indústria não chegam ao consenso, a discussão segue aquecida. Pelo sim ou pelo não.

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