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Na era Bolsonaro, trabalhar na área de cultura se tornou um pesadelo

Como as atuais mudanças nas políticas artísticas do país estão mexendo com a vida dos profissionais que trabalham nos setores culturais

Por Maria Vitória Ramos, de VOCÊ S/A
Atualizado em 5 dez 2020, 20h56 - Publicado em 6 jul 2019, 06h00

Nos últimos sete anos, Daniela Mazzilli, de 33 anos, trabalhou com formatação de projetos culturais para editais e leis de incentivo. Nesse período, ela ajudou a aprovar e levantar recursos para mais de 30 produções artísticas. A carreira como produtora cultural ia de vento em popa.

Até o início deste ano, quando dois e-mails mudaram os ventos. O primeiro chegou em janeiro, anunciando que o contrato para desenvolver uma série, iniciado ainda em 2017, havia sido cancelado. O segundo veio três meses depois e informava o cancelamento, por tempo indeterminado, de um importante edital de cinema.

“Passamos meses preenchendo formulários e reunindo documentos. Dez dias antes de o processo ser encerrado, o governo anunciou a suspensão”, diz. “A sorte é que trabalhamos com quatro projetos ao mesmo tempo, em diferentes estágios, para haver equilíbrio no cronograma”, diz a gaúcha.

As interrupções abruptas, que pegaram Daniela de surpresa, são consequência da atual crise na Agência Nacional do Cinema (Ancine) — que regulamenta o setor audiovisual no país — e dão o tom do que acontece na área cultural neste momento.

Em março, o Tribunal de Contas da União (TCU) questionou a metodologia de prestação de contas da Ancine e ameaçou congelar os recursos do Fundo Setorial do Audiovisual. Em resposta, o atual diretor-presidente, Christian de Castro, suspendeu tudo que estava em andamento, alegando “segurança jurídica”.

Ao saber das paralisações arbitrárias de todos os projetos e editais, o TCU convocou o diretor e oito assessores da agência fomentadora para se explicarem. No final de maio, quando esta reportagem foi concluída, o imbróglio seguia, apesar de a Ancine ter anunciado que voltaria a operar normalmente.

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Exagero ou não, a confusão tem levado alguns profissionais a comparar o cenário atual ao do governo Collor. Em 1990, no início de seu mandato, o então presidente extinguiu a Embrafilme e o Concine, dois órgãos importantes, causando um apagão no cinema nacional.

Daniela e a companheira, Letícia Vieira, sua sócia na produtora Primeira Fila, que fica em Porto Alegre (RS), já estão se preparando para o pior. Como o pró-labore dos próximos meses deve ser menor, elas já reavaliam o orçamento pessoal, revendo custos fixos da casa, por exemplo.

“Nossa sensação é que haverá uma onda de cortes. Temos planos até o final deste ano, depois disso não sei se iremos para outras áreas dentro do setor ou se venderemos sanduíche”, diz.

Assim como ela, muitos profissionais que trabalham com arte amargam com incertezas. Segundo levantamento mais recente da ­Firjan, organização sem fins lucrativos que promove o desenvolvimento da indústria do estado do Rio de Janeiro, havia 64 853 pessoas empregadas diretamente pela cultura em 2017.

Mas o número, de acordo com os especialistas, é maior. Isso porque as produções culturais, em geral, geram empregos sazonais. “Há uma carência de métricas para esse setor no Brasil. Infelizmente, existem poucos estudos e números que nos ajudem a argumentar a favor”, afirma Ana ­Paula Souza, doutora em sociologia da cultura pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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Áreas como cinema, teatro, dança e artes plásticas começaram a acumular perdas maiores desde janeiro deste ano, quando o presidente Jair Bolsonaro (PSL) extinguiu o Ministério da Cultura e, no lugar, criou o da Cidadania, que concentra Cultura, Esporte e Desenvolvimento Social.

Para Miguel Jost, pesquisador de políticas públicas para a cultura na PUC-Rio, a manobra reduziu a importância da pauta na agenda nacional. Hoje, segundo ele, há uma paralisia nas estruturas responsáveis por fomentar a arte no país.

“Numa pasta tão ampla, é evidente que a cultura passou a ter menor relevância. Não há informações claras sobre quais são os planos do governo para o segmento.” E isso gera insegurança em toda a cadeia produtiva, que envolve desde a costureira que produz os figurinos até os serviços de catering para alimentação de artistas e funcionários.

Por duas semanas, VOCÊ S/A procurou insistentemente tanto o Ministério da Cidadania quanto a Secretaria Especial de Cultura. O intuito era saber quais são os objetivos da pasta para o mercado cultural em 2019. Ao todo, a reportagem enviou 20 e-mails e fez dezenas de ligações.

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O secretário especial da Cultura, Henrique Medeiros Pires, chegou a agendar uma entrevista, mas depois a cancelou sem justificativa clara. Questionada, a pasta informou que o único autorizado a falar sobre as atividades do setor cultural é o ministro da Cidadania, Osmar Terra. Ele, no entanto, declinou o pedido da revista e informou, via assessoria, que falaria “numa próxima oportunidade”.

Lei Rouanet na berlinda

Bruce Gomlevsky: ator teve duas temporadas de espetáculos canceladas pelo teatro público que as sediaria | Foto: André Valentim ()

O principal movimento de Osmar Terra, até agora, foi reestruturar a Lei de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet. Criada em 1991, ela permite que empresas direcionem até 4% do imposto devido (6% para pessoas físicas) a projetos culturais.

No final de abril, o governo anunciou que re­duziria o teto de captação da lei. Se antes artistas e produtores conseguiam levantar até 60 milhões de reais para realizar shows, musicais e exposições, agora o limite é de 1 milhão. O valor que empresas podem abater também encolheu: de 40 milhões para ­10  milhões de reais.

Mexer na mola mestra da indústria cultural brasileira abalou as estruturas do segmento. Sozinha, a Lei ­Rouanet faz o setor movimentar cerca de 1 bilhão de reais em captação por ano. Um estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) mostrou que, a cada 1 real investido por meio do mecanismo, pelo menos 1,59 retorna à sociedade em forma de empregos, contratações de serviços e impostos.

As novas medidas foram justificadas em um vídeo publicado pelo ministro Osmar Terra no Twitter em 22 de abril. “Os brasileiros estão cansados de ouvir falar nos abusos da Lei Rouanet. Vamos enfrentar a concentração de recursos públicos”, disse ele. E concluiu: “Com menos dinheiro, mas melhor distribuído, teremos muito mais atividades culturais e artistas apoiados”.

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A concentração dos recursos em grandes produtores do eixo Rio-São Paulo é, de fato, um problema apontado há anos por estudiosos do sistema. “A Lei de Incentivo à Cultura é um instrumento liberal, de mercado.

Logo, reproduz a estrutura financeira do país. Quem patrocina musical tem interesse em dialogar com esse tipo de público e não migrará de atividade”, diz Ana Paula, da Unicamp. Na visão dela, o teto de 1 milhão de reais não vai resolver essa assimetria.

Se o governo quer apoiar produtores de outras regiões, tem de criar políticas que incentivem a descentralização de recursos. Caso contrário, o dinheiro continuará nas mãos de poucos.

É por isso que, a princípio, acredita-se que a redução do valor de patrocínio não terá efeito prático para a maior parte dos artistas independentes. Pesquisadores da FGV analisaram todos os projetos financiados pela Rouanet desde 1993 e concluíram que nem 1% deles teve aporte acima de 800 000 reais.

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Cerca de 90% das iniciativas captaram de 1 000 reais a 100 000 reais, sendo que a maioria esmagadora dos proponentes não arrecadou nem 1 real. Em 2017, dos 54 000 projetos aprovados pelo extinto Minc, apenas 2 800 alavancaram recursos.

Quem concentra a atenção das companhias, no fundo, são os grandes espetáculos, como os musicais. É esse tipo de atividade que deve ser afetado pelo teto de 1 milhão de reais.

A questão é que esses eventos têm equipes consideráveis e movimentam toda uma gama de profissionais, de figurinistas a maquiadores, passando por músicos e técnicos de som e luz.

“Só na cidade de São Paulo, no ano passado, o setor teatral gerou 30 000 empregos diretos. Os impactos são significativos”, diz Gabriel Paiva, presidente da Associação de Produtores Teatrais Independentes (APTI).

O ator, diretor e produtor Bruce Gomlevsky, de 44 anos, já sente a retração dos investimentos na área. Neste semestre, ele teve duas temporadas de peças canceladas: Memórias do Esquecimento, monólogo que dirigia e interpretava, e Um Tartufo, peça também dirigida por ele e inspirada no clássico de Molière.

Os espetáculos, que tratam, respectivamente, da ditadura militar e de conflitos religiosos, seriam sediados por um teatro público da capital carioca, mas o espaço cancelou-os de modo repentino.

Em 2018, Bruce já havia tirado 100 000 reais do próprio bolso para custear as mesmas apresentações. Com 25 anos de experiência nos palcos, diz que só apaixonados conseguem enfrentar tantos altos e baixos.

“Não tenho imóvel próprio e sustento dois filhos. Já me endividei, já paguei os débitos, já juntei e já perdi dinheiro. A vida do artista no Brasil é uma montanha-russa de emoções.” Ele afirma que só consegue pagar as contas porque se desdobra em diversas frentes. “Sou ator, diretor, produtor, compositor, captador de recursos, professor de teatro e tradutor.”

Nos últimos quatro anos, Bruce atuou em quatro novelas e duas séries da TV Globo, emissora onde segue contratado para a série de terror Desalma, protagonizada por Claudia Abreu e cuja estreia está prevista para o segundo semestre.

Efeito cascata

Além das mudanças na Lei Rouanet, há outros fatores inquietando os profissionais da cultura, como a possibilidade de corte nos repasses ao grupo composto de Sesc, Sesi e Senai, entre outros.

Pouco antes de assumir o Ministério da Economia, em dezembro, Paulo Guedes disse que era preciso “meter a faca no sistema S”. Em maio, Jair Bolsonaro deu o primeiro passo rumo à promessa e assinou um decreto que obriga essas entidades a detalhar gastos com salários e serviços prestados à sociedade.

Além disso, grandes empresas públicas anunciaram contenção em seus programas de marketing cultural. A Petrobras, por exemplo, cancelou o patrocínio de 13 festivais. Outras estatais também reduziram seus investimentos.

No final de maio, a Caixa Econômica Federal informou que não manteria o custeio da versão itinerante do Festival de Cinema de Vitória, o tradicional Cinema na Praia. A instituição também encerrou a parceria com o consagrado cinema de rua Caixa Belas Artes, na capital paulista.

O espaço, que possui seis salas, só continuará com as portas abertas porque conseguiu patrocínio da iniciativa privada — a cervejaria Petra, do Grupo Petrópolis, fechou contrato de cinco anos para manter o local.

Alegando a necessidade de “rever políticas internas”, os Correios, que já tinham derrubado pela metade o valor dos investimentos em cultura entre 2017 e 2018, não fizeram nenhum aporte na área em 2019.

Para piorar, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) pisou no freio. De janeiro a maio, o órgão aportou 25,8 milhões de reais no segmento — valor bem mais baixo que o dos últimos anos. Como comparação, no ano de 2018 o BNDES destinou 858 milhões para atividades artísticas.

Não é de hoje

Junior Perim: para levantar dinheiro, ele aluga o circo até para festas de casamento | Foto: André Valentim ()

Apesar do quadro drástico, Simone Constante, pesquisadora e parecerista para avaliação de projetos da Lei Rouanet e para o Fundo Setorial do Audiovisual, pontua que os efeitos dessa retração começaram a ser sentidos a partir de 2015, quando estouraram as crises econômica e política do governo Dilma Rousseff (PT).

De lá para cá, a cultura vive uma perda de relevância contínua no orçamento geral da União. Em 2014, por exemplo, os repasses para Ministério da Cultura, fundos de cultura e demais instituições públicas apoiadas pelo governo federal somavam 4 bilhões de reais.

Em 2019, esse número caiu pela metade, com previsão de 2 bilhões. Os investimentos na área também caíram de 0,12% das verbas federais, em 2014, para 0,06% neste ano. Já o orçamento realizado pelo Ministério da Cultura foi reduzido de 267,7 milhões de reais, em 2015, para 118 milhões, em 2018, no governo Michel Temer (MDB).

Isso tudo após um ciclo de uma década de expansão e profissionalização na área, em que as pessoas tiveram coragem para se especializar na produção artística e largar o emprego paralelo para se dedicar à arte. “Agora você já vê esse pes­soal voltando a fazer bicos em outros setores econômicos”, afirma Simone.

O Circo Crescer e Viver, em atividade há 20 anos na capital fluminense, retrata bem esse encolhimento. A escola de formação circense chegou a ter orçamento anual de 7 milhões de reais em 2014.

Hoje opera com 800 000 ­reais, captados em 2018 por meio da Lei ­Rouanet. Junior Perim, fundador do circo e ex-secretário de cultura da cidade do Rio de Janeiro durante o governo de Eduardo Paes (DEM), conta que até 2017 a escola de formação do circo atendia 90 jovens e 150 crianças.

Mas ele foi obrigado a reduzir o programa, destinado às crianças das favelas no entorno. Hoje atende 60 alunos, com professores voluntários e aportando recursos próprios. Já o programa de formação artística, que atendia jovens de outros estados e diferentes estratos socioeconômicos, foi descontinuado.

Junior também precisou demitir mais de 30 pessoas desde que os recursos minguaram, além de encerrar os programas de residência para fomento do empreendedorismo no circo, no qual chegou a investir até 270 000 reais por ano.

Para manter o negócio funcionando, o empreendedor tem feito o mesmo que muitos profissionais que trabalham com atividades culturais no país: comer pelas beiradas para sobreviver. Uma de suas estratégias foi diversificar o modelo de negócios do circo, encontrando novas fontes de renda.

Além de temporadas de espetáculos pagos, com ingressos de até 30 reais — 30% deles gratuitos para quem mora na comunidade —, Junior agora aluga o espaço para outras companhias circenses nacionais e internacionais e se tornou um hub de eventos noturnos, sediando desde casamentos até festas de música eletrônica.

Junior ainda ministra workshops sobre gestão de risco com base em técnicas circenses para o mundo corporativo. “Defendo que o Estado precisa enxergar a cultura como um setor produtivo, oferecendo subsídios. Como pode um centro cultural pagar 30 vezes mais caro o lote de energia do que uma montadora de veículos?”, diz ele, que, no final de maio, teve enfim uma boa notícia.

O circo conseguiu, pela lei municipal de incentivo do Rio, patrocínio da BR Distribuidora, da Amil e do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). O aporte vai permitir a contratação de seis novos instrutores para a retomada das atividades sociais.

Quando o setor público e o privado se unem em prol da cultura, ganham o mercado e a sociedade.

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