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O ‘Clube das 5h da manhã’ pode não ser para você

Entenda por que acordar muuuito cedo, nova mania do mundo corporativo, pode trazer frustrações e prejuízos à saúde.

Por Natalia Gomez
Atualizado em 16 jun 2021, 11h02 - Publicado em 10 out 2020, 10h00

Se até pouco tempo atrás era raro conhecer quem adorasse pular da cama às 5 da manhã, o jogo virou depois que madrugadores de plantão proliferaram no mundo corporativo. Entre eles estão o fundador da XP, Guilherme Benchimol, o empresário Abílio Diniz e o fundador da Cacau Show, Alexandre Costa. Chamado de “clube das 5”, esse grupo ganha força no Brasil. Tanto que a ideia de levantar cedo, antes do sol nascer, espalhou-se pelas redes sociais, virou hashtag (#5amclub) e ganhou influenciadores digitais como adeptos. Thiago Nigro, do canal de finanças Primo Rico, Caio Carneiro, autor do livro de negócios Seja Foda!, e o ex-nadador Joel Moraes são alguns dos que fazem até lives cedinho.

Mas por que 5 da manhã? Segundo especialistas, esse é um horário intermediário entre 4, cedo demais para descansar o suficiente, e 6, uma hora menos efetiva, pelo fato de que o dia já amanheceu e muita gente está de pé, o que atrapalharia o foco.

No livro Clube das 5 da Manhã (BestSeller, 39,90 reais), o autor e expert em desempenho Robin Sharma afirma que esse é o melhor horário para criar um “estado de fluxo”, sem interrupções de ruídos do ambiente ou da tecnologia. Em outra obra importante para a disseminação dessa ideia, O Milagre da Manhã (BestSeller, 39,90 reais), o empreendedor e palestrante Hal ­Elrod defende que acordar cedo faz diferença para quem deseja ser bem-sucedido na vida pessoal e profissional. Isso porque, afirma ele, as primeiras horas da manhã proporcionam um momento de solidão e silêncio propício para cuidar da mente e do corpo.

Mas, embora pesquisas apontem vantagens na rotina matutina, nenhuma delas é específica quanto à necessidade de levantar às 5 horas.

Um estudo realizado pelo professor Christoph Randler, da Universidade de Educação em Heidelberg, na Alemanha, com 367 estudantes universitários, mostrou que os alunos matutinos são mais proativos, têm notas mais altas e conseguem melhores oportunidades de trabalho. “Quando se trata de sucesso profissional, as pessoas matutinas têm vantagens”, afirmou o pesquisador à publicação Harvard Business Review. As análises não levaram em consideração o momento exato em que os participantes acordavam — o questionário investigou apenas quais eram as horas do dia preferidas deles para realizar suas tarefas e verificou quais deles levantavam sempre no mesmo horário nos dias úteis e nos de descanso. Outra pesquisa, realizada na Universidade Complutense de Madri, com 509 adultos, mostrou que pessoas que fazem suas atividades pela manhã são menos procrastinadoras.

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Não é regra

Embora os fãs da alvorada digam que qualquer um consegue se adaptar à rotina de despertar às 5, especialistas em sono alertam que o hábito não é para todo mundo — e, justamente por isso, traz riscos à saúde. “Se para entrar para o tal clube das 5 da manhã você tiver de sacrificar algumas horas de sono, então simplesmente não valerá a pena”, diz Geraldo Lorenzi, diretor do Laboratório do Sono da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Segundo a Fundação Nacional de Sono dos Estados Unidos, adultos precisam dormir, em média, de sete a nove horas por dia. A quantidade varia de pessoa para pessoa, sendo que existem aquelas que se satisfazem com seis e outras que precisam de dez para descansar de verdade.

Quem não respeita seu relógio biológico pode enfrentar cansaço, ansiedade, depressão, doenças gastrointestinais, perda de concentração, lapsos de memória e redução do tempo de reação. “É consenso no meio acadêmico que as características individuais acerca dos horários de dormir e acordar não são uma mera escolha do indivíduo”, alerta a bióloga Cláudia Moreno, vice-presidente da Associação Brasileira do Sono e professora de fundamentos biológicos da saúde humana e de cronobiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

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Assim como existe quem produza melhor pela manhã, há quem seja vespertino e se adapte melhor dormindo e acordando mais tarde. E, de acordo com pesquisadores do sono, isso não é uma opção, e sim uma determinação genética. Ou seja, forçar a barra pode ser um grande erro estratégico que, em vez de elevar, derrubará a produtividade. “Se uma pessoa vespertina acordar às 5, vai virar uma fábrica de restrição de sono, porque provavelmente terá dificuldade de dormir mais cedo”, alerta Geraldo, do Laboratório do Sono.

Isso significa que, se você é uma pessoa vespertina se esmerando para madrugar, em tese você está sabotando seu horário mais frutífero. Foi isso que levou a empreendedora Juliana Mazurkievicz, de 37 anos, a abandonar a ideia de se levantar às 5.

Formada em agronomia, ela leu o livro O Milagre da Manhã no início de 2019 e decidiu seguir as sugestões do autor para ser mais produtiva. Na época, estava estruturando um negócio próprio de absorventes femininos de tecido e achou que a dinâmica a ajudaria a se organizar melhor. Por dois meses, Juliana tentou acordar antes do sol nascer e seguir o ritual sugerido por Hal Elrod: meditar, visualizar objetivos, fazer exercícios, escrever algo e demonstrar gratidão.

No primeiro mês, com muito esforço, ela conseguiu, mas no segundo mês enfrentou dificuldade para manter o ritmo, pois se sentia cansada por abrir mão do sono reparador do início da manhã. “A rigidez não funcionava. Era algo obrigatório, que não trazia leveza ou inspiração para o dia a dia”, diz ela, que vive em Florianópolis (SC). Após constatar isso, a empreendedora decidiu voltar para o horário mais natural, que é acordar às 6h30. Conseguiu manter os hábitos de escrever e agradecer, mas prefere realizar essas atividades antes de dormir, por volta das 22 horas, quando a filha de 5 anos já está dormindo. “A experiência foi útil, pois me ajudou a aceitar limitações e a encontrar uma rotina adequada.”

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Juliana Mazurkievicz, empreendedora: depois de despertar às 5 horas por dois meses, ela percebeu que a rotina estava prejudicando sua produtividade. (Eduardo Marques / Tempo Editorial/Você S/A)

Um estudo feito nos Estados Unidos pelos pesquisadores Dorothee Fischer, David Lombardi, Helen Marucci-Wellman e Till Roenneberg analisou os cronotipos, ou seja, a predisposição natural para ser mais ativo durante o dia ou a noite, de mais de 50.000 pessoas. E chegou à conclusão de que não há regras para horários de energia ou de fadiga: a fatia de pessoas vespertinas na população é de um quarto; o outro quarto é composto de indivíduos matutinos; e a metade restante fica no meio-termo, ou seja, não se enquadra nesses extremos e desperta em horários intermediários. A pesquisa também apontou que as pessoas tendem a ficar mais matutinas ao longo da vida. E é aí que mora outro perigo.

Líderes mais velhos do que os demais terão mais facilidade para acordar cedo. “Se não ficar atento, um chefe pode fazer um bando de gente infeliz, porque para ele é fácil pegar no sono às 21 e acordar às 5, mas para outros membros do time, mais jovens, não”, diz Geraldo.

Esse é um dos pontos de alerta do livro O Milagre da Manhã. Embora afirme que cada pessoa deve saber sua quantidade ideal de sono, o autor Hal Elrod diz que o mais importante não é o total de horas dormidas, mas se o repouso é energizante. Já Robin Sharma é categórico sobre a importância de dormir no mínimo 7h30 por dia. Para isso, ele sugere um ritual do sono, que deve começar pontualmente às 19, com o indivíduo desligando aparelhos eletrônicos e fazendo a última refeição do dia, e terminar às 22, direto na cama.

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O ex-nadador Joel Moraes, de 39 anos, é um exemplo de que só consegue madrugar quem leva a rotina a sério — muito a sério.

Morador de Santos (SP), ele levanta pontualmente às 5, assim que o despertador toca. Seu primeiro destino é a praia, onde corre por uma hora. De volta à sua casa, Joel toma um banho gelado, faz uma série de afirmações positivas diante do espelho (tais como “manifeste seu talento hoje” e “impacte pessoas”), medita por cinco minutos e faz uma visualização dos objetivos de curto, médio e longo prazo. Depois, toma café da manhã e escreve a lista de tarefas do dia. Às 8, está pronto para começar.

Ex-atleta, Joel acordou cedo dos 13 aos 26 anos por causa dos treinos na piscina. Ao encerrar a carreira na natação, no entanto, adotou hábitos noturnos, abandonou os exercícios e passou a acordar cada vez mais tarde. Ganhou 20 quilos e viu a produtividade despencar. Foi quando decidiu dar uma virada e retomar os hábitos da época em que nadava. “Isso ajudou a melhorar meu desempenho, me deu clareza mental e agilidade”, afirma.

Desde 2016, o ex-atleta realiza apresentações ao vivo nas redes sociais às 5 para inspirar os outros a fazer o mesmo. Em uma delas, reuniu mais de 10.000 espectadores que queriam ouvir sobre alta performance.

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Outro lado

Para Geraldo, do Laboratório do Sono, um dos aspectos negativos do clube das 5 é que ele valoriza o estado de vigília e reflete o desprezo que a sociedade atual tem pelo descanso. “Dormir, muitas vezes, é visto como perda de tempo, quando na realidade é tão importante para a saúde quanto o alimento e os exercícios físicos”, diz. E não é só isso. O pesquisador Christopher M. Barnes, da Universidade de ­Washington, que se dedica a estudar os efeitos da falta de sono sobre o trabalho, descobriu que pessoas que dormem pouco são menos éticas no ambiente corporativo e menos hábeis nas relações interpessoais. Em uma das pesquisas, Christopher acompanhou o sono de 40 líderes e 120 trabalhadores por três meses e avaliou a qualidade do relacionamento entre eles. A conclusão? Gestores que dormem pouco são mais impacientes, irritáveis e hostis. “Quando o chefe não está descansado, a equipe paga o preço”, escreveu o estudioso em um artigo de 2018.

Por essas e outras, os profissionais devem avaliar se faz sentido despertar tão cedo. “Um consultor pode incentivar você a acordar nesse horário, contribuindo ou criando um problema para sua vida. Não é algo que se encaixe para todo mundo”, destaca Sigmar Malvezzi, professor de psicologia do trabalho no Instituto de Psicologia da USP. Para ele, se a pessoa não tiver clareza dos objetivos de vida, saltar da cama antes do sol nascer não será garantia de sucesso. “Saber o motivo para levantar nesse horário é fundamental.”

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Leni Nunes, professora de liderança e gestão de pessoas na Fundação Dom Cabral, defende que ter uma receita igual para todas as pessoas é algo ultrapassado. Em sua avaliação, o clube das 5 é uma tentativa de destruir a individualidade e vai na contramão do que o mundo do trabalho está vivendo atualmente, com a valorização da autonomia e da diversidade nas empresas. “Hoje, as ações de desenvolvimento pessoal buscam aproveitar pontos fortes em vez de focar os fracos. Não faz sentido dizer que todos os profissionais podem se beneficiar dessa rotina. Quem tentar funcionar contra sua natureza vai fazer um esforço grande para obter um resultado pífio”, diz.

E, para quem não consegue acordar cedo, a boa notícia é que nem todas as personalidades de sucesso são madrugadoras. O cientista Albert Einstein, por exemplo, gostava de dormir dez horas por dia. Jeff Bezos, fundador da Amazon e um dos homens mais ricos do mundo, declarou publicamente que prioriza dormir oito horas por dia para tomar melhores decisões. Uma prova de que mais importante do que acordar supercedo é organizar o dia com sabedoria, realizando atividades no horário em que se sente mais ativo. Afinal, o que vai trazer sucesso é isso ­— e não o fato de o despertador tocar às 5.


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