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Regulamentar a economia dos bicos pode salvar profissionais e empresários

A precarização das condições de trabalho de aplicativos e a concorrência desleal que derruba microempreendedores trazem à tona a necessidade de regulamentar

Por Nataly Pugliesi
Atualizado em 25 jun 2020, 06h00 - Publicado em 25 jun 2020, 06h00

Matéria originalmente publicada na Revista VOCÊ S/A, edição 263, em 08 de abril de 2020. 

No mundo do jazz, o termo “gig” significa apresentação musical única. Nos últimos anos, esse vocábulo saiu dos palcos para ganhar o mercado e definir um estilo de trabalho que está se tornando típico nos nossos tempos: a economia dos bicos, ou gig economy, em inglês. Esse modelo de trabalho se caracteriza por um arranjo alternativo de emprego, seja pontual, seja temporário, e pela falta de vínculo com um empregador único. Tal modalidade não é nova, mas vem sendo alavancada devido às flexibilizações das leis trabalhistas e, principalmente, aos avanços tecnológicos que possibilitam a criação de plataformas que conectam trabalhadores autônomos a empresas ou pessoas que necessitam de sua expertise ou serviço.

Por um lado, essa dinâmica acomoda uma mão de obra que estava desempregada, ou serve como complemento de renda. Por outro, ela causa impactos negativos, como a precarização das relações de trabalho e o monopólio de mercados. Por isso, começa a haver uma discussão sobre a regulamentação da modalidade.

O maior empregador do Brasil

No ano passado, segundo levantamento feito pela consultoria ­McKinsey, a gig economy já representava um terço da força de trabalho dos Estados Unidos e, neste ano, deve chegar a 43% dos trabalhadores. No Brasil, em 2019, impulsionado pelos altos índices de desemprego, o trabalho informal avançou para 41% da população ocupada, um nível recorde, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ainda segundo o instituto, 17% dos 3,8 milhões de trabalhadores na informalidade atuam nas plataformas digitais, como Uber, iFood e Rappi. Essas empresas são, juntas, a maior “empregadora” do país, acomodando 4 milhões de autônomos.

Tornando o exemplo mais explícito: se reuníssemos quem atua nessas plataformas em uma única folha de pagamentos, ela seria 35 vezes mais longa do que a dos Correios — a maior empresa do país, com 109.000 funcionários. “No contexto de estagnação econômica, o mercado informal cresce porque um trabalhador formal custa caro. As empresas querem continuar produzindo, mas sem os encargos da mão de obra. Por isso, abrem oportunidades informais por projeto ou por tempo parcial”, afirma Juliana Inhasz, coordenadora da graduação em economia do Insper. “Para aqueles que não têm uma profissão ou qualificação e estão desempregados, as plataformas se tornam uma oportunidade.”

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De forma geral, é possível dividir o grupo de profissionais dessa categoria em dois. O primeiro é composto de pessoas com formação e que querem atuar em sua área como freelancer, numa tentativa de trabalhar com mais flexibilidade. No segundo grupo estão as pessoas que não encontram opções de emprego e têm na economia dos bicos a principal ocupação e fonte de renda. Mas o modelo tem uma característica central para todos os tipos de profissionais: as empresas não se responsabilizam nem pelo serviço, nem pelo trabalhador; funcionam apenas como intermediárias, deixando as pessas desamparadas.

Fim do romance

A falta de amarras da gestão tradicional já foi vista como algo muito positivo nessa nova economia. Mas agora isso está sendo apontado como uma das grandes fragilidades do sistema, pois tem deixado os trabalhadores mais inseguros. Quem trabalha na gig economy tem mais preocupações com instabilidade financeira, escassez de trabalho, falta de seguro de saúde e imprevisibilidade de agenda, o que pode resultar em prejuízos na vida social e familiar. “As pessoas romantizam. Você tem um emprego? Tem, mas de baixa qualidade, sem FGTS, INSS nem os demais direitos trabalhistas”, diz Bruna de Sá Araújo, advogada especialista em direito do trabalho e membro do Instituto de Estudos Avançados em Direito (Iead). “Isso é muito ruim no longo prazo, pois como esse trabalhador vai se aposentar? Como ele fica se acontece um acidente que o impossibilite de trabalhar?”

Fica sem renda e sem seguro. A Justiça brasileira entende que não há vínculo empregatício entre os trabalhadores das plataformas digitais e as empresas que administram as ferramentas. A fragilidade do modelo de trabalho ficou bastante evidente quando, em 2019, um entregador da Rappi faleceu durante uma entrega e a empresa (que havia sido procurada enquanto o trabalhador passava mal) se isentou de qualquer responsabilidade. Após ser acionada pelo Procon, a Rappi reiterou que não se sentia responsável porque não há relação de subordinação com os entregadores. A plataforma afirmou que não contrata os entregadores, pelo contrário: são eles que contratam a ferramenta para alavancar seus negócios. O Superior Tribunal de Justiça também criou uma jurisprudência ao dar ganho de causa à Uber em uma disputa entre um trabalhador e a empresa levada à Justiça de Minas Gerais. Portanto, ficou definido que motoristas de Uber não têm vínculo trabalhista com a empresa.

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Mais fragilidade nas crises

Em momentos como o atual, em que o novo coronavírus colocou as pes­soas em quarentena impedidas de sair de casa, alguns informais (como os motoristas de aplicativo) veem sua renda diminuir brutalmente. E esse é mais um ponto de atenção da gig economy. “Na Justiça do Trabalho existe a premissa da irredutibilidade do salário, mas, no caso do motorista ou entregador autônomo, por exemplo, que fica por qualquer motivo impedido de trabalhar, ele recebe menos ou nada, e sem nenhum resguardo”, afirma Bruna de Sá Araújo.

A brasileira líder em entrega de comida iFood, avaliada em 1 bilhão de dólares, que recebeu em 2018 a maior rodada de investimentos da história em toda a América Latina (cerca de 2 bilhões de reais), com operações também no México e na Colômbia, e que faz 18 milhões de entregas por mês, assumiu certa responsabilidade durante a pandemia. A empresa criou um fundo solidário no valor de 1 milhão de reais para dar apoio àqueles que contraírem a covid-19 e necessitarem permanecer em casa sem trabalhar.

Além de ficar à mercê do mercado, outro ponto que pode ser problemático é o excesso de trabalho. “A ausência de subordinação permite que você faça seu próprio horário; no entanto, você ganha proporcionalmente ao que produz. Então, quanto mais trabalha, mais ganha. E, para ter uma renda decente, esses profissionais têm de manter longas jornadas”, diz a advogada Bruna. A Uber, inclusive, já olhou para essa questão. Como muitos de seus motoristas trabalhavam mais de 12 horas por dia, colocando a si mesmos e aos passageiros em risco, a empresa passou a limitar o tempo que o trabalhador fica online. Ao atingir 12 horas, a ferramenta desconecta o motorista, que fica impossibilitado de pegar mais clientes.

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Os qualificados também sentem

Os profissionais com nível superior e que escolheram atuar como freelancer por causa da flexibilidade ou da possibilidade de tirar um sonho do papel também têm suas críticas. É o caso da publicitária Bruna Cosenza, de 26 anos, que escolheu se tornar autônoma depois de algumas passagens por grandes agências, como Thompson e DM9. “Eu queria encontrar um propósito em meu trabalho e também percebi que um modelo com horário mais flexível me faria mais feliz”, diz. Preparando-se para pedir demissão, ela se inscreveu em algumas plataformas de freelance e seguiu com as duas atuações. Quando sua renda como autônoma alcançou a formal, ela fez a transição. “Nesse meio tempo, conversei com mentores e ex-chefes e fiz cursos de escrita criativa e SEO. Montei um portfólio em um site bacana e passei a trabalhar minha imagem no LinkedIn,­ postando bastante conteúdo”, explica. Foram seis meses de preparação e o retorno veio: Bruna tornou-se Top Voice no LinkedIn caracterizando-se como influenciadora em sua área.

Bruna Cosenza, publicitária: no começo, ela se surpreendeu com o baixo valor pago pelas plataformas que reúnem freelancers | Foto: Filipe Redondo (Ricardo Davino/VOCÊ S/A)

No início, sentiu que a produção de conteúdo não estava sendo bem remunerada. “Nessas ferramentas, quem consegue o trabalho é o profissional que oferece o menor valor”, diz Bruna. Outro ponto negativo, para ela, é a prospecção de clientes, já que a maioria dos trabalhadores autônomos tem de sair em busca de novos contratos, sendo, ao mesmo tempo, quem vende, produz e cobra — os pagamentos, aliás, às vezes demoram demais, por se tratar de um trabalho freelancer. Embora já consolidada, Bruna está sentindo o baque da crise da covid-19: um de seus clientes fixos cancelou o serviço, e a renda dela caiu 40%. “Por outro lado, estou lançando meu segundo livro, que só tirei do papel graças à flexibilidade. E também criei cursos online para novos escritores, o que mantém a minha renda”, diz Bruna, que já é autora do livro Lola & Benjamin (Chiado, 39,90 reais).

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E a concorrência?

A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) expõe uma preocupação importante em relação às plataformas de entrega de alimentos: a diminuição drástica, chegando a zerar em alguns casos, da margem de lucro dos pequenos restaurantes parceiros. Além disso, o investimento em dark kitchens, ou cozinhas fantasmas (restaurantes criados apenas para vender delivery por meio de aplicativos), sem exigir licenças específicas, causa uma concorrência desleal que pode, no limite, provocar a falência de pequenos negócios.

Quem sentiu um pouco desses problemas foi Ana Carolina de Oliveira, de 46 anos, proprietária do Marilyn Restaurante, localizado em uma região com muitas empresas no bairro do Tatuapé, em São Paulo. Ex-consultora de pequenos e médios empreendimentos, ela focou seu negócio na venda de refeições executivas saudáveis feitas na hora. Desde a abertura de seu comércio, firmou parceria com o iFood, mas isso não foi vantajoso para ela. “A empresa cobra uma taxa de 27% sobre o valor da venda para utilizar o entregador deles. Isso consome toda a nossa margem, mas entendi que seria um custo de divulgação e fomos testar o processo”, afirma.

Mas a experiência não foi boa. Segundo Ana Carolina, a empresa mobiliza os entregadores para a região com maior demanda e reduz a área de delivery do restaurante onde há menos entregadores disponíveis. “Muitas vezes, a ferramenta limitava meu alcance de entrega a menos de 3 quilômetros. Outras vezes, quando não havia nenhum entregador, eu era bloqueada sem saber, como se meu restaurante estivesse fechado”, lembra. Já aconteceu também de entregadores ficarem com a comida e não entregarem. “Nem nós, nem o iFood temos controle sobre a qualidade dos profissionais”, afirma Ana Carolina. “Além disso, os restaurantes que entram nas superpromoções que o aplicativo sugere não estão ganhando dinheiro e não conseguem sobreviver por muito tempo.”

Ana Carolina de Oliveira, dona do Marilyn Restaurante: problemas com os entregadores e com o algoritmo do iFood, que tirava o restaurante dela do ar | Foto: Celso Doni ()

Como alternativa ao modelo, a empresária já propôs pagar 9 reais para profissionais que fazem entregas de bicicleta, os bikers, que ganham em média 3 reais por serviço nos aplicativos, mas eles não toparam. “Os brasileiros não são ensinados a empreender. Esses trabalhadores têm a falsa sensação de que precisam de alguém para intermediá-los e fazer com que ganhem dinheiro. É isso que essas pessoas veem nessas ferramentas”, diz Ana Carolina. Em um ano, foram vendidas apenas 12 refeições do Marilyn via iFood, e a empreendedora decidiu sair da plataforma.

Regulação do setor

Está em tramitação na Assembleia Legislativa da Califórnia, nos Estados Unidos, uma lei que obriga as empresas de aplicativo Uber e Lyft a contratar seus motoristas como empregados. Se aprovada, a lei passará a valer naquele estado para todas as companhias que fazem parte da economia dos bicos. Com a contratação, os motoristas terão benefícios como seguro-desemprego, plano de saúde, salário mínimo, licença-maternidade e paternidade e pagamento de hora extra.

“Infelizmente, aqui no Brasil a jurisprudência aponta para a ausência de vínculo entre essas empresas e seus trabalhadores, e eu acredito que essa regulamentação, embora necessária, esteja longe de acontecer”, diz a advogada Bruna de Sá Araújo. “Eu usaria a Constituição Federal como parâmetro, estabelecendo limite de jornada, patamar mínimo salarial e resguardo do empregado em caso de acidente ou doença. Precisamos pensar em uma forma de esse empregado começar a contribuir com a Previdência.”

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Para as especialistas, é papel dos governos proteger esses trabalhadores. “Em mercados que começam a crescer e a gerar distorções nas relações de trabalho, o Estado tem de entrar para garantir melhores condições aos profissionais, longe da exploração, só que sem deixar a flexibilidade se perder”, diz Juliana, do Insper. Essa equação não é simples de resolver.

 

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