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Open banking: entenda o poder de ser dono dos seus dados bancários

Você muda de banco, leva seu histórico junto e ainda coloca as instituições financeiras para lutar pelo seu dinheiro. Saiba como vai funcionar.

Por Guilherme Eler | Ilustração: Gustavo Pedrosa | Design: Laís Zanocco | Edição: Tássia Kastner
Atualizado em 15 jul 2021, 16h59 - Publicado em 5 jul 2021, 08h00
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ara a maioria dos brasileiros, a relação com o banco funciona como um jogo de videogame. Pagou a fatura do cartão em dia? Ganhou pontos. Tomou empréstimo e quitou no prazo? Uma vida extra. Recebe salário na conta? Direito a fase bônus. Essa evolução permite, com o passar dos anos, que o cliente vá passando para fases mais difíceis, mas com recompensas maiores. Níveis mais altos (e renda maior, convenhamos) dão direito a mais benefícios – como um cartão com mais limite, atendimento personalizado e juros mais baixos na hora de financiar a casa própria.

O problema é que, caso a pessoa decida trocar de banco, todo o progresso vai para o ralo. Não existe essa de “salvar o jogo”: a relação com a nova instituição começa do zero. Para abrir a conta é preciso preencher um cadastro imenso, passar por uma análise de crédito para receber um cartão com um limite decente e ainda trocar a cobrança de todos os boletos que estavam no débito automático. E isso ainda não resolve outro problema. O banco continua sem saber se o novo cliente é do tipo que mantém as contas em dia ou um caloteiro contumaz.

Era onde morria a concorrência. Só que o jogo mudou. Agora o consumidor pode mudar de banco salvando a partida para recomeçá-la de onde parou. Mesmo abrir uma conta nova deixará de ser um calvário burocrático. Bastará digitar o CPF no app do banco novo e autorizá-lo a importar do concorrente os seus dados. Nisso, ele puxa nome completo, data de nascimento, endereço, salário, o extrato bancário e até a sua fatura do cartão de crédito. Pronto, essa nova instituição vai te oferecer produtos como se te conhecesse desde a época do Mega Drive.

Já parece transformador suficiente, mas é só o começo dessa revolução chamada open banking. Ele pode ser resumido em dois pilares: propriedade de dados e consentimento. É que até hoje era como se o extrato da sua conta, que diz o que você fez com o dinheiro que você ganhou trabalhando, não fosse seu, mas do banco. Agora ele é seu e ponto. E você dá acesso a ele a quem você bem entender. Se for concorrente, ainda melhor.

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Demanda antiga

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ssa revolução não vai acontecer porque os bancos são bonzinhos, claro que não. Open banking é como o Pix: o Banco Central mandou, todo mundo teve que obedecer. E, por obedecer, entenda padronizar os aplicativos para que todos falem a mesma língua.

É que a diferença de idiomas era um trunfo para os bancos. Históricos de transações, empréstimos e investimentos são e sempre foram ativos preciosos para instituições financeiras. Daí que ter mais clientes e não passar informação é uma estratégia de negócio. Isso ajuda a explicar como foi se dando a concentração de mercado ao redor dos bancões. Segundo o BC, Banco do Brasil, Itaú, Bradesco, Caixa e Santander respondem por mais de 80% dos empréstimos no país.

Algum princípio de ameaça veio do surgimento de fintechs – as startups de serviços financeiros, que tendem a oferecer produtos mais baratos e um atendimento decente a seus clientes. Em 2020, o total de empresas do tipo aumentou 34% no Brasil, segundo dados da consultoria Distrito. Em junho deste ano, 1.174 startups atuavam nesse segmento, todas disputando um naco de mercado das instituições financeiras consolidadas. O problema é que as fintechs caíam naquele problema de sempre: pouco acesso à informação, dificuldade de conhecer o cliente e avaliar se ele seria um bom pagador.

A falta de informação era tão grande que isso virou um negócio. Muito antes de o BC se mexer, algumas fintechs tentaram fazer o próprio open banking. Ofereciam um aplicativo no qual o cliente poderia visualizar todas as suas contas. Se ele tivesse conta no banco A e cartão de crédito no banco B, enxergaria seus gastos em um lugar só, o que é bom para manter as finanças sob controle. Em troca, essas empresas ganhariam o poder de processar dados dos clientes e avaliar o perfil de risco tal qual um Serasa da vida. Aí eles serviam de plataforma para todos os outros bancos anunciarem seus produtos a esse cliente, se assim quisessem.

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O caso mais célebre é o do Guiabolso. O aplicativo de gestão financeira foi lançado em 2013 e tem 6 milhões de usuários. Para usar, o cliente informa número da conta e a senha de acesso no bancão (que, importante enfatizar, não é a mesma que autoriza pagamentos). Aí um robozinho vai lá na conta e copia os dados do extrato para o app do Guiabolso, tudo com consentimento do dono das informações – exatamente como preconiza o open banking.

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O novo regime permite que você se livre mais facilmente de serviços desnecessários, e carregue só aqueles que deseja mesmo utilizar. (Gustavo Pedrosa/VOCÊ S/A)

Só que os bancões odiaram a ideia, é óbvio, e o Bradesco foi quem fez alguma coisa. Colocou uma senha extra para barrar o concorrente e foi à Justiça contra o app em 2018, alegando que era responsável por proteger os dados dos clientes. O Guiabolso havia acionado o Cade (o órgão que regula a concorrência no Brasil) ainda em 2016, afirmando que o banco de Osasco havia adotado uma prática anticompetitiva. No fim, o Bradesco pagou uma multa para encerrar o caso no Cade e depois desistiu da ação na Justiça. Era um caso perdido.

Hoje essa é uma não-questão. Com o open banking, banco nenhum poderá fechar uma porta a outro app, se o cliente tiver dado uma cópia da chave. O que o open banking faz é garantir que todas as portas tenham o mesmo tipo de chave. Pode ser uma do tipo tetra e cada cliente tem a sua, claro. O que importa é padronizar o modelo. As chaves de comunicação entre aplicativos são as APIs (sigla em inglês para Interface de Programação de Aplicativos).

Um exemplo prático de API é o Facebook. Se você se loga em um e-commerce qualquer com a sua conta da rede social, é porque aquele site usa uma API da rede de Mark Zuckerberg – o que o vendedor quer é evitar que você tenha o trabalho de preencher um cadastro e aí desista da compra.

Junte-se a eles

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ntre o caso Bradesco e a ideia do BC de implementar o open banking, todo mundo entendeu que não ia mais dar para segurar cliente na base da senha. O negócio, então, é competir de verdade. E até para os bancões o compartilhamento de dados passou a ser útil.

É que faz tempo que as pessoas não são mais fiéis a um banco só. Uma pesquisa feita pelo banco digital C6 em parceria com o Ipec indicou que o brasileiro mantém, em média, contas em 3,6 bancos ao mesmo tempo. Isso quer dizer que mesmo um bancão não sabe mais para onde vai 100% do dinheiro do cliente.

Tanto que o Santander chegou a oferecer um crédito de R$ 10 na fatura do cartão para aqueles que aceitassem fazer uma espécie de pré-cadastro no open banking. Para ganhar o dinheiro, o cliente precisava autorizar o banco espanhol a acessar contas nos concorrentes assim que o open banking entrasse em vigor. A promoção valia até 15 de julho.

Os dados valem mais do que isso, e tudo indica que o consumidor entendeu. Tanto que a mesma pesquisa do C6 indica que 43% dos entrevistados não estão dispostos a compartilhar seus dados com instituições financeiras – ainda que tenham vantagens com isso. Claro que tem um problema nesse levantamento: a maioria dos entrevistados (56%) disse que ainda não conhece ou não entendeu como o open banking funciona.

De fato, tudo é muito novo. A primeira fase, que não mudou a vida de ninguém com CPF, foi em fevereiro de 2021. Foi quando os bancos passaram a trocar informações entre eles mesmos – como os tipos de contas que oferecem, empréstimo e informações como a localização de agências físicas. É o esquema de ajustar sotaques da mesma língua. A partir de agosto, a coisa é para valer.

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A chamada fase 2 começa no dia 13 de agosto (se não for adiada novamente) e é a da troca de dados cadastrais e extrato bancário, aquilo que explicamos no começo do texto. Mesmo isso é gradual. Primeiro que a participação é obrigatória apenas para os bancos grandes e médios. Na nomenclatura do BC, são as instituições do grupo S1 – os bancões de verdade, com porte igual ou superior a 10% do PIB – e S2, com os que respondem por uma fatia entre 1% e 10% do PIB. Existem ainda as faixas S3 e S4, para quem a participação é facultativa, mas sujeita ao aval do BC.

Mais do que isso. Nas duas primeiras semanas, só 0,1% da base de clientes dos grupos S1 e S2 terá suas informações compartilhadas. Nas duas semanas seguintes, esse percentual salta para 0,5%. Quinze dias depois, chega a 1% do total. “O volume de dados de 1% dos clientes dos 11 maiores bancos do sistema financeiro brasileiro já é mais do que tudo o que foi compartilhado na Inglaterra”, diz Mardilson Queiroz, consultor do Departamento de Regulação do Sistema Financeiro do Banco Central. A referência à Inglaterra não é à toa. O país foi pioneiro na adoção do open banking.

Até setembro, 100% dos dados deverão ser compartilháveis 24 horas por dia, sete dias por semana. Em 30 de agosto começa a fase 3, que permitirá que usuários paguem contas e façam transferências com Pix fora do internet banking ou do app do banco. É tipo usar o WhatsApp para mandar um Pix em vez de usar o débito, como está liberado hoje (se é que você usa o Zap para isso).

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Brincadeira séria

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revolução de verdade vem com a fase 4, que começa em dezembro. É a partir de quando os aplicativos de banco vão virar marketplaces de crédito, seguro, câmbio, investimentos. Pouco importa onde está a sua conta bancária. Se você quiser um empréstimo, poderá encontrar ofertas de todos os bancos e contratar naquele que oferecer a taxa de juro mais baixa, sem abrir uma nova conta para isso. Isso é competição na veia. Valerá para todo e qualquer produto financeiro. Você também pode autorizar o app a fazer uma busca das melhores ofertas para você.

E é aqui que os bancões podem levar uma vantagem. Eles têm muita matéria-prima (dinheiro) para dar crédito a taxas menores – não dão hoje porque não precisam, afinal você quase não consegue comparar preços de crédito. E eles também são grandes fornecedores de outros produtos bancários, algo que as fintechs ainda estão desenvolvendo.

“É um jogo de ganha-ganha. Mas, se não tivesse um regulador dando as fichas, não ia sair”, diz Queiroz, do Banco Central.

Só que, ao contrário do que o BC planejava inicialmente, o desenvolvimento da fase 4 do open banking deve ser lento e avançar para 2022. A partir de maio do ano que vem, dados relacionados a seguros, investimentos e câmbio dos clientes poderão começar a ser compartilhados. Também existem atrasos na fase 3, aquela do Pix.

 

O que vai demorar é isto aqui: você gosta do app do Nubank, mas ainda prefere deixar o dinheiro no Bradesco. Sem problema algum. Vai ser possível abrir o app roxinho e pagar o aluguel por ele. Com a mágica do open banking, o dinheiro será “resgatado” lá no bancão e enviado para o seu locatário. Mais. Lembra a função de agregar contas em um único app, que o Guiabolso faz desde 2013? Passa a ser o padrão, se você quiser.

No limite, você poderá usar um aplicativo de um banco que achar mais funcional sem ter nenhum serviço financeiro contratado com ele. Essa mágica foi adiada para setembro do ano que vem, mas vai sair. E, quando ela chegar, o open banking terá, nas palavras do BC, se convertido em open finance, um verdadeiro poliamor financeiro. Eles que lutem para conquistar a sua fidelidade.

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